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Em se tratando de cultura, não há contestação?

Recentemente assisti ao documentário "A Maçã de Eva" e, confesso, me surpreendi. A produção dirigida por José Manuel Colón debate e apresenta inúmeros dados sobre um tipo de violência contra a mulher que ainda é muito praticada: a mutilação genital.



Ao decorrer do curta-metragem, conclui-se que são muitos fatores e crenças que sustentam essa prática em algumas comunidades da África-país que apresenta os maiores índices de mulheres mutiladas. A seguir, estão os mais importantes:






A-) SOCIEDADE PATRIARCAL

Em algumas tribos africanas, principalmente na Gâmbia e no Quênia, ainda impera o sistema patriarcal. Nesse contexto, os pais possuem amplos poderes sobre a sua família, tomando atitudes autoritárias. Por exemplo, em uma tribo queniana chamada Massai, fortemente patriarcal, a porcentagem de mulheres mutiladas chega a aproximadamente 90%, e essa relação é presente em várias outras comunidades.



B-) BAIXO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Devido a preponderância de uma economia de subsistência, muitas famílias africanas dependem do dote pago pela mão da filha em casamento. Assim, ainda na infância, os pais já articulam o matrimônio das filhas, geralmente com homens muito mais velhos. Mas, para que o casamento seja de fato possibilitado - e para que o dote seja pago- as meninas devem estar mutiladas, visto que as não mutiladas são mal vistas pela comunidade ( nessas tribos, acredita-se que uma mulher que sinta prazer nas relações sexuais são incontroláveis, e não serão fiéis ao marido) . Como um exemplo, o documentário mostra o caso de uma mulher que havia recusado a mutilação, mas, devido à discriminação que sofreu da sociedade, aceitou o procedimento.


C-) BAIXO ÍNDICE DE EDUCAÇÃO

Essa é a consequência de todas as outras. A partir do momento em que desde a infância a menina já está casada, a educação é esquecida. Dessa forma, a mutilação é passada de geração em geração, pois sem uma educação que apoie e dê suporte, as meninas não desenvolvem o seu poder de decisão e de contestação.


D-) CRENÇAS RELIGIOSAS

A mutilação é tida como uma tradição religiosa nessas comunidades africanas. Por meio desse controle ideológico, diversos mitos são propagados, como: que os orgãos sexuais femininos são sujos e impróprios, que a mutilação é garantia de fidelidade e diversos outros.


Durante o documentário, são apresentados os vários tipos de mutilação genital que as mulheres sofrem. Os principais são:

TIPO I-) Remoção parcial ou total do clítoris e/ou do prepúcio (clitoridectomia);

TIPO 2-) Remoção parcial ou total do clítoris e dos pequenos lábios, com ou sem excisão dos grandes lábios (excisão) ;

TIPO 3-) Estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios, com ou sem excisão do clítoris (infibulação)

TIPO 4-) Todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas, por exemplo: punção/ picar, perfuração, incisão/corte, escarificação e cauterização.


Infelizmente, todas elas representam muitos riscos para a saúde da mulher. As consequências são inúmeras, mas destaco algumas:

A-) HEMORRAGIA E INFECÇÃO

O procedimento é extremamente precário. As lâminas que são utilizadas normalmente servem para várias meninas, não são esterilizadas e, por ser feito sem nenhum cuidado médico- nem mesmo anestesia- acarreta grande risco à vida. Ainda mais grave é o risco de infecção pelo vírus da AIDS, que apresenta altos índices na África e pode ser passado por meio dos materiais usados na mutilação.









B-) O PSICOLÓGICO:

Em um relato, uma moradora de uma tribo africana afirma que nunca se esqueceu do som que a lâmina fez ao cortar a sua pele, mesmo após se passarem vários anos. Além do fato de que essa crueldade acontece ainda na infância, momento em que a menina não tem possibilidade alguma de se defender, além de em muitas vezes, não ter uma noção exata do direito que está sendo tirado delas - mesmo assim, o medo que elas sentem é intenso: Sylvia Keys, moradora de uma tribo queniana fugiu da sua casa durante a noite para não ser mutilada; sozinha e ainda criança, atravessou toda a savana para buscar ajuda.


C-) PROBLEMAS NA HORA DO PARTO E NAS RELAÇÕES SEXUAIS

Além da mãe, os recém nascidos também sofrem com essa prática. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a taxa de mortalidade infantil aumenta em 55% em mulheres mutiladas. Isso acontece principalmente em mulheres que sofreram a mutilação do tipo III (a infibulação). Além desse mal, há o fato de elas não sentirem mais prazer nas relações sexuais, visto que em muitos casos, corta-se o clitóris, um dos orgãos responsável pelo prazer da mulher.


D-) A INTERRUPÇÃO DE SONHOS

Já no início da produção, diversas meninas africanas começam a contar quais são os seus sonhos e os seus objetivos. Por sorte, elas terão um futuro melhor, pois já estão sob cuidados de uma ONG chamada TASARU, que fica dentro de uma tribo africana e ajuda a combater essa prática. Contudo, sabemos que muitas mulheres tiveram e têm os seus sonhos interrompidos por conta desse ritual, assim, durante a vida inteira elas ficam presas à esse trauma, pois não possuem acompanhamento psicológico adequado.



Devido a tradição desse ato, muitos o consideram como algo cultural. Porém, é preciso ter cuidado, pois tal relativização resulta na aceitação de um ato violento, que oprime e tira da mulher um fator principal para a vida: A liberdade de escolha. Felizmente, há algumas atitudes que estão tratando de combater a mutilação genital feminina, como, por exemplo, o aplicativo I-cut, desenvolvido por meninas do Quênia, em uma competição que tem como temática o desenvolvimento de aplicativos que ajudem a combater problemas em diversas comunidades; o i-cut busca permitir que jovens que se sintam em perigo possam pedir socorro. Além disso, a Organização das Nações Unidas decretou um dia internacional contra a mutilação genital feminina em 6 de fevereiro, e quer acabar com essa prática até 2030. Felizmente, estamos em um momento em que há muita contestação e luta para combater esse ritual, pois, de fato, não podemos aceitar um ato violento e opressor como esse.



Maurício Farinazzo



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